sábado, 27 de novembro de 2010

Rio de Janeiro, Novembro de 2010.

            Imagine você morar em um condomínio onde o síndico pudesse chegar a qualquer momento à sua casa e lhe mandar embora, intimidando-o com sua força física. Provavelmente era assim que funcionavam as coisas na Idade da Pedra, pré-história, em um imaginário condomínio de cavernas. Creio que não era raro quando uma família, dignamente repousando em seu recanto e cuidando dos filhos, era expulsa pelo líder quando este bem entendesse, numa demonstração do lado animalesco do homem troglodita nos primórdios da humanidade.
            Muitos séculos passaram e ainda na Idade Média, os Senhores Feudais gozavam do poder de retirar quem eles bem entendessem de seus lares. Nesta época, o poder do mais forte se dava pela força da posse, isto é, o Senhor Feudal era o proprietário das moradias dos camponeses, cujas vidas não faziam mais sentido a não ser por servir ao seu Senhor e garantir suas existências e seus lares.
            A Sociedade moderna até que evoluiu neste sentido. Para evitar situações como estas, criou-se o Estado Democrático de Direito, assim constituído no Brasil e na maioria dos países ao redor do mundo. Nestes lugares, ditos civilizados, o poder e a força deixaram de ser ostentados pelo mais forte ou pelo maior proprietário. (Evidentemente há controvérsias, uma vez em que no mundo capitalista posse é poder, mas isto é papo para outro texto).
            No caso do Brasil, os integrantes do Estado Democrático de Direito – cada um de nós – concedemos poder a três instituições, como você deve saber, que são de propriedade do povo. O Poder Judiciário tem como papel básico resolver os conflitos de poder entre todos os entes da sociedade. As polícias, o Ministério Público e a Promotoria de Justiça (órgãos que não estão instalados nos três poderes), fiscalizam e realizam justiça, nos casos em que se identificar discrepância de poder em alguma das partes conflitantes, seja este poder caracterizado de diversas maneiras – principalmente com violência.
            O que a criação do Estado Democrático de Direito propõe primordialmente, portanto, é promover a paz entre a sua população e fazer com que todos os seus integrantes possam viver suas vidas e se desenvolver de maneira igual perante um poder concedido e à Lei do Estado. Na teoria, tudo é lindo.

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       A partir da segunda metade do século passado o Brasil, e a maioria dos países subdesenvolvidos, passou a conviver com um fenômeno tão problemático quanto inevitável: o deslocamento das pessoas do campo para os centros urbanos. Por se tratar de um país pobre e que não precisava de tanta gente assim trabalhando nas cidades – além, claro, de uma situação política nada favorável como foi descrita no texto sobre a ditadura militar – grande parte da população teve de improvisar moradias em áreas irregulares da cidade, criando ambientes onde o Estado não conseguia mais penetrar para ofertar educação, segurança e saúde durante muito tempo – e, de certa maneira, também negligenciou esta situação, bem como a existência destas pessoas.
            O resultado terrível, na ausência da Lei e principalmente de educação, foi um retrocesso social no qual se verificou situações similares às do Tempo das Cavernas – gente criando e revogando leis e regras conforme sua vontade e força, permitindo a entrada e saída de quem bem entendesse destes submundos e ostentando poder em forma de armamento pesado.
            O tráfico de drogas no Rio de Janeiro, pulverizado em tempos remotos entre a classe consumidora, passou a ser mais lucrativo nas favelas por diversos motivos: dificuldade da entrada da polícia, grande oferta de mão de obra ociosa, proximidade destes redutos ao mercado consumidor (pois no Rio, os morros estão dentro da cidade), entre outros. Inicialmente, entretanto, este negócio não era fortemente armado, afinal, traficante nenhum quer incomodação, e sim o dinheiro das vendas. Quando o poder público tentou enfrentar o tráfico de drogas na base da porrada, o movimento reagiu da mesma maneira.
            O Brasil, por ainda se um país muito carente e, por consequência, o Estado e a cidade do Rio de Janeiro também, as ações repressoras dos governos passados fracassaram por si só e agravaram ainda mais o problema: Os bandidos e traficantes se uniram, se organizaram e se armaram, fazendo das favelas as suas fortalezas intocáveis, onde o policial que conseguisse adentrá-las seria facilmente corrompido ou morto.

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            O Brasil que nasce na segunda década do século XXI (2010 em diante) é um Brasil diferente. Não somos mais (tão) pobres. Continuamos com diversos problemas, porém há dinheiro a ser investido em nossas fraquezas. Você assistiu no filme Tropa de Elite 2 a evolução dos aparatos da Polícia Militar do Rio de Janeiro e, principalmente, do Batalhão de Operações Policiais Especiais, o BOPE, que agora opera até com helicópteros e conta com um contingente de homens muito maior do que o do primeiro filme. Deve ter assistido, também, no apelidado "Tropa de Elite 3" (referência aos recentes ataques dos traficantes cariocas) a quantidade de camionetes importadas, tanques, armas, helicópteros e outros aparatos de guerra que o BOPE hoje dispõe. A discrepância de força entre o poder da máfia e o poder da sociedade (a polícia), definitivamente se inverteu.
            O que está acontecendo nos dias de hoje na cidade do Rio de Janeiro é a consequência inevitável (e já prevista pelo Governo do Rio e pela sociedade carioca) de dois eventos importantes que vieram acontecendo nos últimos três ou quatro anos na cidade maravilhosa. O primeiro deles é a emergência da máfia da Milícia: Bandidos da pior qualidade, infiltrados nas diversas áreas do poder do Estado e ganhando muito dinheiro à custa dos próprios moradores das favelas. Não vou, entretanto, abordar este assunto, pois ele é muito bem colocado em Tropa de Elite 2 que, caso você ainda não tenha assistido, faça-me o favor de ir logo.
            O segundo importante acontecimento é um projeto novo da Secretaria de Segurança do Governo do Rio de Janeiro que está dando no que falar. Entendidos em segurança pública chegaram à conclusão de que não adianta subir o morro com tropas fortemente armadas e prender os líderes do tráfico de drogas. Por quê? Porque estes guetos haviam se transformado em verdadeiras escolas do crime e do tráfico de drogas, de sorte que, uma vez eliminada a existência de um líder, logo apareceria outro em seu lugar e passaria a usufruir de toda a estrutura já montada para se ganhar dinheiro ilegalmente e, principalmente, se manter no poder sobre milhares de habitantes. A grande solução encontrada foi nada menos do que tomar o território dos bandidos, criando as UPP: Unidade de Polícia Pacificadora. No lugar do adolescente portando arma para cima e para baixo na vigília do tráfico, policiais em permanente ocupação. E os bandidos? Eles é que procurem outro morro para traficar.
            As UPPs foram aumentando em quantidade e os traficantes, cada vez mais encurralados, sem território. Só lhes restou partir para um artifício de quem não tem mais nada a perder: o terrorismo.
            O que está acontecendo no Rio de Janeiro agora no final de novembro de 2010 é praticamente um manifesto dos traficantes, agora pobres e enfraquecidos. Estes atos são mais políticos do que criminosos, uma rebelião.
            Diferentemente de outras épocas – quando os traficantes mandavam fechar o comércio, as escolas, quando bem entendiam e a população acatava, com medo de uma guerra entre traficantes e policiais – os moradores do Rio desta vez estão dispostos a ver o pau comer dentro da cidade, pois viram o sucesso que foi as operações para a instalação das UPPs. Além disso, um novo sentimento de confiança e admiração pelo trabalho polícia vem crescendo, o que cria tolerância de alguns dias até que a ordem seja estabelecida, por mais prejuízos que a população de bem venha sofrendo.
            O complexo do Morro do Alemão é o alvo final para que a maioria dos grandes cartéis de narcotráfico do Rio de Janeiro seja desmontada. Os últimos marginais se deslocaram para lá por uma série de fatores (dificuldade de acesso pela polícia, tamanho gigantesco do conjunto de favelas, etc.) e as autoridades de segurança praticamente já sabiam que um dia isto iria acontecer. Chegou a hora. O grand finale será acabar com estes elementos na base da bala, da prisão, ou deixá-los livre pela cidade a cometer outros tipos de crimes. Crime organizado e tráfico, contudo, nunca mais. O aborto social está sendo feito com o consentimento da maioria.

  
            Esta semana ficará marcada na história do país por ser o dia em que uma grande quantidade de pessoas, considerada sem condições de viver em sociedade e sem conserto, foi eliminada ou presa. Ainda, será a semana simbólica do início do fim do crime organizado por tráfico de drogas no Rio de Janeiro, depois de décadas.
            Ainda que eu sinta um alívio em ver a paz de volta aos morros cariocas, é difícil assumir o sentimento de felicidade ao ver estas pessoas, que nunca tiveram acesso a nada, sendo mortas. É uma sensação de satisfação misturada com luto: Uma parcela da sociedade pagando com a vida em nome da ordem e, posteriormente, do progresso.
            É óbvio que o crime não desaparecerá do Rio de Janeiro, que a cidade continuará tendo assaltos, seqüestros e roubos. Uma coisa, no entanto, é importante celebrar: os meninos que crescem em uma favela não terão mais como exemplo de poder e de sucesso os traficantes que antes por lá perambulavam armados, com muito dinheiro, objetos de desejo e mulheres. É uma chance de ouro para implantar outros valores nesta nova geração. Desta maneira, um indivíduo que venha a transgredir as leis, quem sabe agora seja caso de possível reparo, de maneira a inseri-lo novamente na sociedade, ao contrário destes homens infelizes que estão hoje tocando o terror no Rio. Quem sabe o Estado, finalmente, possa se valer de seu  sistema carcerário e passar a investir melhor nele. 
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            Bastante otimista a minha visão, você deve estar refletindo. Não nego que, a despeito da minha vontade de que isto se concretize, é mais ou menos isto o que eu enxergo, mesmo.
            Como otimismo é comigo mesmo, observe a evolução do Brasil durante as décadas, sob a minha ótica.

Anos 70: Anos de chumbo, ditadura militar, repressão, mentira, tortura, endividamento.
Anos 80: Incapacidade de pagamento da dívida, empobrecimento da população, desigualdade social, aumento da violência, crises financeiras. Porém, importante (e conturbado) processo de democratização.
Anos 90: Democracia estabelecida e consolidada – depois da turbulência Collor. Estabilização da moeda, da economia e, principalmente, controle da inflação. Importantes regulamentações administrativas (tanto fiscais quanto monetárias), que impediram maior endividamento do país. Entretanto, desigualdade social alta, violência, desemprego na casa dos 20%, infra-estrutura, saúde e educação precárias e alto endividamento (dependência) externa.
Anos 2000: Manutenção da estabilidade econômica. Desemprego mais baixo da história (6%), dívida externa paga, protagonismo no cenário mundial, início da diminuição da desigualdade social, crescimento econômico e aumento da renda da população. Todavia, a infraestrutura ainda ruim, bem como educação e saúde, apesar de ligeiras melhoras. Violência em índices elevadíssimos.

Anos 10: Obviamente não sabemos. Mas meu palpite é que seja a década da segurança e da infraestrutura, ainda mais porque o país será sede dos dois maiores eventos do mundo o que forçará o país a ofertar segurança e condições de locomoção ao mundo que virá até nós. Creio que o PAC está sendo apenas um ensaio para a revolução estrutural que estamos prestes assistir. Vejo também o país mobilizado e coeso na questão da segurança. É agora ou nunca o momento da valorização e união das polícias, uma revolução no sistema carcerário do país e, como resultado, índices mais baixos de violência, bem como maior sensação de segurança em todas as cidades do país. Quem sabe a década de 20 não seja finalmente a da educação, para que a de 30 venha a ser a da tecnologia de ponta?

            É provável que você discorde por considerar otimismo demais. Por outro lado, acredito que considerar uma década inteira para que cada uma destas revoluções ocorra tenha bastante dose de realismo.




terça-feira, 23 de novembro de 2010

Reflexões sobre Comes, Bebes e Ouves...

            Quem me conhece de perto sabe que sou um glutão. Aprecio intensamente a atividade de comer e tudo o que contempla uma refeição.  Às vezes, como mais do que o necessário para me satisfazer, devo admitir. Às vezes, a quantidade que como parece ser mais do que o necessário apenas na visão de outras pessoas, mas, na verdade, é perfeitamente ideal para suprir a demanda energética dos meus 80kgs e das minhas atividades físicas diárias.
            Um gourmet, ao contrário do que muitos pensam, não é aquele que prepara comidas. Gourmet é um indivíduo, apreciador das artes culinárias, que tem um paladar apurado e que possui um bom conhecimento em gastronomia. Um gourmet pode ser um péssimo cozinheiro, por exemplo. Não é o meu caso. Não sou um gourmet e tampouco sou um péssimo cozinheiro. Aliás, eu gosto das minhas comidas e uma das atividades que mais me dá prazer é descobrir combinações de temperos e ingredientes, ao cozinhar determinado prato.
            Não tenho, como já disse, um paladar super apurado a ponto de identificar ingredientes, temperos e modos de preparo de uma comida apenas experimentando-a. Minha mãe tem esta capacidade e, além dela, muita gente famosa, como Luís Fernando Veríssimo, Jô Soares, Ed Motta e até o Galvão Bueno (pelo menos é o que ele diz), entre outros.
Apesar de não possuir tamanha habilidade gustativa, também não sou um zero à esquerda no assunto. Segundo os entendidos, a arte de apreciar uma boa comida ou uma boa bebida vem com o treino. Na prática isto é facilmente comprovado. Ao beber vinhos, por exemplo, é impossível que alguém se torne um expert no assunto de um dia para o outro. Ou de um ano para o outro. São necessárias diversas experiências até que se desenvolva uma habilidade no sentido do paladar que permita a diferenciação dos diferentes tipos de vinho – inclusive o bom do ruim. Outra bebida, embora com exigência gustativa menos sofisticada, como a cerveja, também segue à regra. Quando se começa a beber cerveja, se tem a sensação de que todas são iguais: amargas e ruins. Aos poucos, passa-se a diferenciar – e a apreciar – as cervejas mais encorpadas das comuns. Os bons bebedores de cervejas tem a capacidade de diferenciar até mesmo o gosto de duas cervejas comuns, mas de marcas diferentes. É mesmo que uma questão de treino.
Um último exemplo, e creio agora ter concordância unânime, é o sushi. Até ao final da década de 90, a comida japonesa no Brasil era algo tratado como, no mínimo exótico – estranho e nojento para os mais desbocados. Dificilmente se encontra alguém que tenha se deliciado com o peixe cru na primeira vez em que o comeu. É mais comum que a pessoa tenha “aceito” aquele estranho prato no contato inicial, e passado a apreciar, aos poucos, a partir da segunda ou terceira experiência.
Não sei como ocorreu em minha vida, mas, como eu disse, não sou um zero à esquerda em matéria de paladar – embora me coloque longe do patamar de gourmet. Diferentemente de certos colegas, amigos e amigas, familiares, enfim, consigo apreciar de forma plena um prato mais bem elaborado. E é bastante fácil identificar na nossa sociedade e cultura aqueles que não têm esta capacidade. Em geral, em uma aleatória ocasião em que se sirva uma requintada iguaria, ouve-se comentários irônicos lamentando a ausência do tradicional churrasquinho do final de semana, do trivial feijão com arroz ou de um simplório macarrão à bolonhesa, numa infeliz tentativa de desqualificar o trabalho, sobretudo artístico e gastronômico que foi desempenhado, por não conseguir compreendê-lo. Analogamente, é como pessoas (como eu) que vai a uma exposição de arte moderna e não compreende bulhufas por nunca ter desenvolvido esta sensibilidade. Não proferirei, contudo, coisas do tipo "até uma criança faria" só porque não compreendo o que está sendo expressado, aceitando minha ignorância plástico-artística. Mas muita gente por aí o faz.
Este meu interesse por boa comida poderia estar relacionado com criação familiar, pois como já disse, minha mãe é uma expert em degustação e uma excelente cozinheira (não apenas de refeições triviais, mas da elaboração de sofisticados pratos dignos de trabalhos de cheffs). Certamente fui influenciado por ela e pelo hábito do meu pai em beber um bom vinho conforme cada tipo de refeição. Entretanto, o mesmo não aconteceu com a minha irmã, desmentido esta tese. Ela não dá importância aos detalhes das comidas, gerando até mesmo atritos quando ela vai ao supermercado e, por considerá-los supérfluos, não compra os ingredientes que eu gostaria de ter em minha dispensa (nós dividimos um apartamento). Além disto, ela é amante de fast-foods, bolachas recheadas, refrigerantes, entre outras coisas que eu considero pobre em paladar. Mas que não deixo de apreciar.
É aí onde eu gostaria de chegar. Certa feita li uma das excelentes crônicas do Luís Fernando Veríssimo em que ele defendia o que defenderei aqui. Veríssimo, apesar de ser um entusiasta da boa gastronomia, defendeu veementemente o "pastel de rodoviária". Isto é, ele quis ir à contramão de muitos entendidos que, ao chegar a determinado patamar de habilidade para degustar as coisas, esnobam as comidas triviais, simples, mas tradicionais de cada cultura, quando não raro as discriminam como comidas populares, ruins e daí por diante.
Sou do time do Luís Fernando Veríssimo (aliás, ele também é torcedor do Internacional) e consigo apreciar, na mesma proporção, um Cassoulet ou um canapé de foie gras e um pastel de carne com caldo de cana. Em geral, comidas que me remetem à boas recordações de criança são extremamente simples e de especial sabor para mim. Aliás, é isto que o filme desenho-animado Ratatoulie demonstrou ao final, quando o temido gourmet finalmente provou o prato elaborado pelo ratinho protagonista. Algo extremamente simples na França, o ratatoulie (basicamente berinjela, tomate e abobrinha), mas que elaborado de tal maneira capaz de sensibilizar profundos sentimentos em quem o experimenta, especialmente pela sua elegante simplicidade.

Sinceramente, discorri sobre tudo isto porque recentemente fiz uma correlação mental entre as habilidades de interpretação intrínsecas dos seres humanos, vinculadas ao desenvolvimento de determinadas sensibilidades. Já ponderei a percepção visual de uma arte plástica – da qual sou desprovido – e também da percepção do paladar – que creio ter falado até demais, como sempre.
Faltou, portanto, escrever sobre uma das percepções mais importantes da minha vida: a percepção musical. Sou bisneto, neto e filho de excelentes músicos. Comecei a estudar teoria musical aos 7 anos e tinha tudo para me tornar um bom músico também. Na prática, isto não se confirmou. Porém, o conhecimento que eu trago das aulas de teoria musical e das aulas de "musicalização" além de ouvir música o tempo todo em casa desde muito cedo – inclusive musica clássica quase que diariamente – me gabarita a autodenominar, sem receios, um bom entendedor musical. Isto é, quando ouço uma canção, sou capaz de identificar os diferentes instrumentos e de que maneira eles estão em harmonia, a captar as variações de arranjo e as intenções do arranjador etc. Logicamente não é necessário ter uma veia musical para desenvolver tal habilidade. Como já mencionei, é tudo uma questão de habituar-se, de treinar mesmo (agora, neste caso, treinar o ouvido musical). Prova disto é que tenho amigos que nunca tocaram nenhum instrumento e que tem um ótimo entendimento para a música. Por outro lado, também conheço gente que toca razoavelmente bem um instrumento, mas que não desenvolveu direito a capacidade de ouvir.
A lógica é a mesma e o meu discurso não será diferente do que acabei de escrever para o paladar. Há uma abundância de entendidos de música ou bons músicos desmerecendo outros estilos musicais (muito mal generalizados, diga-se de passagem) abertamente na TV, nos blogs, etc. Eu mesmo sou muito questionado pelo motivo de não só ouvir, mas de gostar e apreciar determinados estilos musicais, digamos, mais populares e erroneamente discriminados como música ruim. Afinal, o que é música ruim?
Meu pai assinou a revista Vinho durante um bom tempo e certa vez me disse que aprendeu com os enólogos mais esclarecidos e sensíveis o seguinte ensinamento: "Vinho bom é aquele que é bom para você". É uma frase subjetiva e certamente não quer dizer que uma garrafa de vinho que custe mais de R$100,00 terá qualidade inferior ao de uma que custa menos de R$10,00.
Não pense, seguindo o raciocínio, que estou querendo jogar um maestro de orquestra sinfônica e uma dupla sertaneja no mesmo balaio. Evidentemente que um indivíduo que estudou música erudita durante muitos anos tem muito mais condições e capacidade de reger, interpretar e compor canções muito mais complexas e bem elaboradas. Tão elaboradas que muitas vezes não entram no entendimento da maioria das pessoas.
Uma banda popular que consegue movimentar multidões tanto em shows quanto na procura por sua música em tudo quanto e lugar (internet, festas, etc.) não deve ser taxada como ruim. Deve-se, no mínimo, observar que elementos fizeram daquele movimento artístico musical um sucesso e o que faz as pessoas procurarem ouvir aquele tipo de música, aquele tipo de mensagem, por mais simples que possa parecer aos ouvidos de quem já pode evoluir o seu entendimento musical.  
Sou tão admirador da música simples e popular de qualquer cultura quanto do pastel de rodoviária de carne e ovo feito na hora, do macarrão à bolonhesa – capaz de conquistar qualquer criança pela sua simplicidade e do mais simples e talvez mais antigo prato preparado pelo ser humano: o tão amado churrasco.