terça-feira, 23 de novembro de 2010

Reflexões sobre Comes, Bebes e Ouves...

            Quem me conhece de perto sabe que sou um glutão. Aprecio intensamente a atividade de comer e tudo o que contempla uma refeição.  Às vezes, como mais do que o necessário para me satisfazer, devo admitir. Às vezes, a quantidade que como parece ser mais do que o necessário apenas na visão de outras pessoas, mas, na verdade, é perfeitamente ideal para suprir a demanda energética dos meus 80kgs e das minhas atividades físicas diárias.
            Um gourmet, ao contrário do que muitos pensam, não é aquele que prepara comidas. Gourmet é um indivíduo, apreciador das artes culinárias, que tem um paladar apurado e que possui um bom conhecimento em gastronomia. Um gourmet pode ser um péssimo cozinheiro, por exemplo. Não é o meu caso. Não sou um gourmet e tampouco sou um péssimo cozinheiro. Aliás, eu gosto das minhas comidas e uma das atividades que mais me dá prazer é descobrir combinações de temperos e ingredientes, ao cozinhar determinado prato.
            Não tenho, como já disse, um paladar super apurado a ponto de identificar ingredientes, temperos e modos de preparo de uma comida apenas experimentando-a. Minha mãe tem esta capacidade e, além dela, muita gente famosa, como Luís Fernando Veríssimo, Jô Soares, Ed Motta e até o Galvão Bueno (pelo menos é o que ele diz), entre outros.
Apesar de não possuir tamanha habilidade gustativa, também não sou um zero à esquerda no assunto. Segundo os entendidos, a arte de apreciar uma boa comida ou uma boa bebida vem com o treino. Na prática isto é facilmente comprovado. Ao beber vinhos, por exemplo, é impossível que alguém se torne um expert no assunto de um dia para o outro. Ou de um ano para o outro. São necessárias diversas experiências até que se desenvolva uma habilidade no sentido do paladar que permita a diferenciação dos diferentes tipos de vinho – inclusive o bom do ruim. Outra bebida, embora com exigência gustativa menos sofisticada, como a cerveja, também segue à regra. Quando se começa a beber cerveja, se tem a sensação de que todas são iguais: amargas e ruins. Aos poucos, passa-se a diferenciar – e a apreciar – as cervejas mais encorpadas das comuns. Os bons bebedores de cervejas tem a capacidade de diferenciar até mesmo o gosto de duas cervejas comuns, mas de marcas diferentes. É mesmo que uma questão de treino.
Um último exemplo, e creio agora ter concordância unânime, é o sushi. Até ao final da década de 90, a comida japonesa no Brasil era algo tratado como, no mínimo exótico – estranho e nojento para os mais desbocados. Dificilmente se encontra alguém que tenha se deliciado com o peixe cru na primeira vez em que o comeu. É mais comum que a pessoa tenha “aceito” aquele estranho prato no contato inicial, e passado a apreciar, aos poucos, a partir da segunda ou terceira experiência.
Não sei como ocorreu em minha vida, mas, como eu disse, não sou um zero à esquerda em matéria de paladar – embora me coloque longe do patamar de gourmet. Diferentemente de certos colegas, amigos e amigas, familiares, enfim, consigo apreciar de forma plena um prato mais bem elaborado. E é bastante fácil identificar na nossa sociedade e cultura aqueles que não têm esta capacidade. Em geral, em uma aleatória ocasião em que se sirva uma requintada iguaria, ouve-se comentários irônicos lamentando a ausência do tradicional churrasquinho do final de semana, do trivial feijão com arroz ou de um simplório macarrão à bolonhesa, numa infeliz tentativa de desqualificar o trabalho, sobretudo artístico e gastronômico que foi desempenhado, por não conseguir compreendê-lo. Analogamente, é como pessoas (como eu) que vai a uma exposição de arte moderna e não compreende bulhufas por nunca ter desenvolvido esta sensibilidade. Não proferirei, contudo, coisas do tipo "até uma criança faria" só porque não compreendo o que está sendo expressado, aceitando minha ignorância plástico-artística. Mas muita gente por aí o faz.
Este meu interesse por boa comida poderia estar relacionado com criação familiar, pois como já disse, minha mãe é uma expert em degustação e uma excelente cozinheira (não apenas de refeições triviais, mas da elaboração de sofisticados pratos dignos de trabalhos de cheffs). Certamente fui influenciado por ela e pelo hábito do meu pai em beber um bom vinho conforme cada tipo de refeição. Entretanto, o mesmo não aconteceu com a minha irmã, desmentido esta tese. Ela não dá importância aos detalhes das comidas, gerando até mesmo atritos quando ela vai ao supermercado e, por considerá-los supérfluos, não compra os ingredientes que eu gostaria de ter em minha dispensa (nós dividimos um apartamento). Além disto, ela é amante de fast-foods, bolachas recheadas, refrigerantes, entre outras coisas que eu considero pobre em paladar. Mas que não deixo de apreciar.
É aí onde eu gostaria de chegar. Certa feita li uma das excelentes crônicas do Luís Fernando Veríssimo em que ele defendia o que defenderei aqui. Veríssimo, apesar de ser um entusiasta da boa gastronomia, defendeu veementemente o "pastel de rodoviária". Isto é, ele quis ir à contramão de muitos entendidos que, ao chegar a determinado patamar de habilidade para degustar as coisas, esnobam as comidas triviais, simples, mas tradicionais de cada cultura, quando não raro as discriminam como comidas populares, ruins e daí por diante.
Sou do time do Luís Fernando Veríssimo (aliás, ele também é torcedor do Internacional) e consigo apreciar, na mesma proporção, um Cassoulet ou um canapé de foie gras e um pastel de carne com caldo de cana. Em geral, comidas que me remetem à boas recordações de criança são extremamente simples e de especial sabor para mim. Aliás, é isto que o filme desenho-animado Ratatoulie demonstrou ao final, quando o temido gourmet finalmente provou o prato elaborado pelo ratinho protagonista. Algo extremamente simples na França, o ratatoulie (basicamente berinjela, tomate e abobrinha), mas que elaborado de tal maneira capaz de sensibilizar profundos sentimentos em quem o experimenta, especialmente pela sua elegante simplicidade.

Sinceramente, discorri sobre tudo isto porque recentemente fiz uma correlação mental entre as habilidades de interpretação intrínsecas dos seres humanos, vinculadas ao desenvolvimento de determinadas sensibilidades. Já ponderei a percepção visual de uma arte plástica – da qual sou desprovido – e também da percepção do paladar – que creio ter falado até demais, como sempre.
Faltou, portanto, escrever sobre uma das percepções mais importantes da minha vida: a percepção musical. Sou bisneto, neto e filho de excelentes músicos. Comecei a estudar teoria musical aos 7 anos e tinha tudo para me tornar um bom músico também. Na prática, isto não se confirmou. Porém, o conhecimento que eu trago das aulas de teoria musical e das aulas de "musicalização" além de ouvir música o tempo todo em casa desde muito cedo – inclusive musica clássica quase que diariamente – me gabarita a autodenominar, sem receios, um bom entendedor musical. Isto é, quando ouço uma canção, sou capaz de identificar os diferentes instrumentos e de que maneira eles estão em harmonia, a captar as variações de arranjo e as intenções do arranjador etc. Logicamente não é necessário ter uma veia musical para desenvolver tal habilidade. Como já mencionei, é tudo uma questão de habituar-se, de treinar mesmo (agora, neste caso, treinar o ouvido musical). Prova disto é que tenho amigos que nunca tocaram nenhum instrumento e que tem um ótimo entendimento para a música. Por outro lado, também conheço gente que toca razoavelmente bem um instrumento, mas que não desenvolveu direito a capacidade de ouvir.
A lógica é a mesma e o meu discurso não será diferente do que acabei de escrever para o paladar. Há uma abundância de entendidos de música ou bons músicos desmerecendo outros estilos musicais (muito mal generalizados, diga-se de passagem) abertamente na TV, nos blogs, etc. Eu mesmo sou muito questionado pelo motivo de não só ouvir, mas de gostar e apreciar determinados estilos musicais, digamos, mais populares e erroneamente discriminados como música ruim. Afinal, o que é música ruim?
Meu pai assinou a revista Vinho durante um bom tempo e certa vez me disse que aprendeu com os enólogos mais esclarecidos e sensíveis o seguinte ensinamento: "Vinho bom é aquele que é bom para você". É uma frase subjetiva e certamente não quer dizer que uma garrafa de vinho que custe mais de R$100,00 terá qualidade inferior ao de uma que custa menos de R$10,00.
Não pense, seguindo o raciocínio, que estou querendo jogar um maestro de orquestra sinfônica e uma dupla sertaneja no mesmo balaio. Evidentemente que um indivíduo que estudou música erudita durante muitos anos tem muito mais condições e capacidade de reger, interpretar e compor canções muito mais complexas e bem elaboradas. Tão elaboradas que muitas vezes não entram no entendimento da maioria das pessoas.
Uma banda popular que consegue movimentar multidões tanto em shows quanto na procura por sua música em tudo quanto e lugar (internet, festas, etc.) não deve ser taxada como ruim. Deve-se, no mínimo, observar que elementos fizeram daquele movimento artístico musical um sucesso e o que faz as pessoas procurarem ouvir aquele tipo de música, aquele tipo de mensagem, por mais simples que possa parecer aos ouvidos de quem já pode evoluir o seu entendimento musical.  
Sou tão admirador da música simples e popular de qualquer cultura quanto do pastel de rodoviária de carne e ovo feito na hora, do macarrão à bolonhesa – capaz de conquistar qualquer criança pela sua simplicidade e do mais simples e talvez mais antigo prato preparado pelo ser humano: o tão amado churrasco. 

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